Projeto CREEPY COLETIVA DE HALOOWEEN
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Arte: SpecMisam |
Querides, eu e alguns colegas artistas meus (vide Spec Misam e Aislan Maia) estávamos há meses trabalhando em um projeto de creepypasta pro Halloween (saiu atrasado? Sim, mas o importante é que ta lindo), e, embora esteja postado em 5 partes no meu Facebook, talvez fosse mais cômodo para vocês se elas estivessem condensadas em uma página única, por isso está aqui!
Acompanhe com essa música F O D A do lindíssimo Aislan, chamada "Caçada na Chuva", com a capa LINDÍSSIMA que a Spec desenhou.
Agora, sem mais delongas, leiam a história na íntegra!
[PARTE 1/5]
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Arte: SpecMisam |
Jornal de Minas – setembro de 2008
Polícia encontra
novas pistas sobre desaparecimento em Extrema
A polícia deu mais um passo rumo ao desfecho do misterioso
caso de Natasha Carmim de Nogueira (32), a advogada que está desaparecida desde
maio em Extrema. A família deu queixa de seu desaparecimento na mesma noite em
que notou sua falta, alegando que Natasha simplesmente desapareceu sem
explicações e sem deixar vestígios. A polícia vinha investigando o
desaparecimento desde então, e estava quase considerando transferir o caso para
as entidades superiores, expandindo a área de busca, mas os novos achados
indicam que essa medida talvez não seja necessária.
O delegado responsável pelo caso, Reinaldo Novaes, da 23ª
Delegacia de Polícia Civil, diz que sua patrulha encontrou na última
terça-feira (23), alguns tufos de cabelo que possivelmente pertencem a Natasha,
mas ainda será preciso esperar a análise do material. “Os tufos não estavam lá
há muito tempo, no máximo uma semana, então acreditamos que ela deve estar por
perto” afirmou Novaes para o Jornal de Minas. O material foi coletado na zona
rural de Extrema, no bairro do Godoy. Fora isso, a polícia não tem maiores
informações sobre o caso. O corpo de Natasha ainda não foi encontrado, e não se
pode afirmar que esteja morta.
Até o momento, a vizinhança afirma não ter visto ou ouvido
nada sobre Natasha, e ninguém soube dizer para a polícia onde ela pode estar.
As patrulhas ficarão mais atentas no Godoy e arredores. “Agora que temos essa
pista tão recente, estamos esperançosos de encontrar Natasha logo nos próximos
dias”, Novaes informou.
Jornal de Minas – maio de 2009
Onda de mortes
preocupa moradores de Extrema
Desde o começo do ano, os moradores de Extrema têm relatado
com muito assombro a inexplicável onda de mortes que começou a varrer a cidade,
especialmente nas áreas rurais. Só esse ano, já foram registradas nove mortes
estranhas.
Os moradores locais dizem que o assombroso se deve ao fato
de que todas as vítimas morreram dormindo, e tinham um semblante apavorado. “A
gente não sabe o que tá acontecendo, aí fica com medo mesmo”, diz a mãe de uma
das vítimas encontradas no Godoy. Ela não quis se identificar.
A polícia está averiguando o caso, mas, embora todas as
mortes sejam surpreendentemente semelhantes, não existe qualquer indício de que
haja alguém por trás disso. Entretanto, a população se recusa acreditar que é
uma mera coincidência, e insiste para que a polícia continue investigando.
Até que o caso seja concluído, as autoridades pedem que os
moradores sejam cautelosos, evitem sair durante a noite, mantenham suas casas
bem fechadas e contatem a polícia caso haja qualquer movimentação estranha.
Jornal de Minas – julho de 2010
Desaparecimentos no
sul de Minas Gerais continuam preocupando as autoridades locais
Há cinco meses a polícia na região do sul de Minas Gerais
têm recebido diversas denúncias de desaparecimentos, especialmente nas zonas
rurais das cidades pequenas da região. Até agora, foram notificados quarenta e
um casos, sendo que apenas vinte desses desaparecidos foram encontrados, todos
mortos em algum lugar de mata fechada.
As autoridades ainda não sabem quem ou o quê tem matado as
vítimas, mas ao que tudo indica, existe um padrão nas mortes e, portanto,
pode-se inferir que todos foram mortos pela mesma pessoa, apesar de as vítimas
serem encontradas relativamente distantes umas das outras. A delegada
responsável pelo caso, Jaqueline de Souza, da 23ª Delegacia de Polícia Civil,
diz que as mortes quase sempre são todas causadas por uma espécie de asfixia, e
alguns morrem de ataque cardíaco, mas ainda é difícil dizer. “Os corpos em
geral não estão muito feridos, mas parecem muito desgastados, apesar de serem
mortes recentes, e ainda não conseguimos entender direito o que aconteceu com
eles. Entretanto, felizmente, estamos avançando com o caso: percebemos que o
assassino segue em círculos pela região, voltando ao mesmo lugar depois de
algum tempo. Isso nos dá pistas de onde podemos esperar uma possível nova
vítima”. A polícia também acredita que o assassino e o sequestrador são a mesma
pessoa.
“Os motivos ainda são um mistério, mas já concluímos que
estamos lidando com um assassino em série, não há dúvidas quanto a isso. O
estado é de alerta e o clima é muito tenso”, diz a delegada.
As famílias das vítimas não quiseram dar entrevista para o
Jornal de Minas. O último sequestro foi registrado na última segunda-feira (5),
nas zonas rurais de Camanducaia, e o último corpo foi encontrado
aproximadamente uma semana antes, no dia 26 do mês passado, em Monte Verde. A
polícia não tem maiores informações sobre o caso, mas segue investigando.
“Nossa meta imediata é conseguir achar algum dos desaparecidos ainda com vida.
Se conseguirmos, será um grande avanço.”, afirmou Souza.
[PARTE 2/5]
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Arte: SpecMisam |
23ª Delegacia de
Polícia Civil – Transcrição de relatos na íntegra
Identificação da
vítima: 7B223M
Nome: E.M.R.
Sexo: feminino
Data de nascimento:
04/09/2005 (7 anos)
Data da entrevista: 12/03/2013
A entrevistada, por
motivos de segurança e devido a sua menoridade, não pôde ter sua identidade
relevada. Foi resgatada nas proximidades do Juncal, em Extrema, no dia
29/01/2013, junto com mais uma vítima, sendo estes os únicos resgatados até o
momento. E.M.R. tinha apenas leves ferimentos no corpo e leves sinais de
asfixia. Os pais, que registraram seu desaparecimento no dia 15/01/2013,
afirmam que a garota apresentou um retrocesso em seu comportamento habitual
desde que foi resgatada, mostrando-se mais assustada, “manhosa” e emotiva. Com
a devida autorização dos pais, foi pedido que ela contasse um pouco do que
ouviu, viu e viveu durante os meses em que ficou desaparecida.
“Todos os dias, antes de ir para o trabalho, mamãe me deixava
na estradinha de terra onde a tia Lu me buscava para me levar pra aula. Eu
passava um tempinho esperando sozinha, mas mamãe dizia que não tinha problema
porque eu já era grande. Era bem rápido, então eu não me importava, ficava
brincando com minha boneca enquanto esperava.
Tava tudo bem, eu sabia que a tia Lu ia chegar logo, mas de
repente eu comecei a ouvir barulhos estranhos que não pareciam folhinhas perto
dali, parecia tipo téc-téc-téc. Eu
comecei a ficar com muito medo, o barulho era baixinho, mas parecia que tava
ficando perto de mim. Tava com um ventinho gelado que me deixava mais encolhida
ainda, tudo parecia ficar mais assustador porque eu não sabia o que era esse
barulho. Eu olhava ao redor e não via ninguém.
De repente, eu senti como se uma coisa pesada tivesse pulado
em cima de mim, mas ainda não tinha ninguém ali, e eu pensei que fosse um
fantasma ou aqueles monstros que pegam a gente, eu fiquei com mais medo,
comecei a chorar, eu não conseguia chamar ajuda.
Depois disso, eu acho que eu dormi, e acordei em algum lugar
com muitas plantas, um lugar muito fedido. Fiquei com mais medo. Tinha outras
pessoas lá, algumas pareciam dormir de um jeito estranho e outras também
pareciam ficar com medo. Eu vi uma moça feia e fedida, meio abaixada perto das
pessoas que estavam dormindo estranho, e ela sussurrava algumas coisas
esquisitas, de olhos fechados. Eu fiquei quietinha lá, tava com medo de ir
embora sozinha, talvez eu ficasse perdida, e meu pai sempre diz que se eu me
perder era pra eu ficar parada em lugar só porque aí era mais fácil de me
encontrar, então eu fiquei quieta.
A gente devia tá dentro de uma casinha de floresta, mas não
sei porque não são assim nos desenhos. Só sei que era uma florestinha. Quando a
moça feia parou de sussurrar, ela abriu os olhos e começou a andar devagar, e
eu ouvi o mesmo téc-téc-téc no chão, porque ela tinha unhas muito grandes e
sujas que batiam nas pedrinhas e coisinhas assim.
(...)
As vezes ela trazia comida pra gente, coisa estranha do
mato, e água com gosto ruim, e em algumas noites quando eu dormia eu também
sentia ela em cima de mim, tipo fechando minha garganta. Era só um sonho porque
ela não tava lá de verdade, mas dava muito medo mesmo assim. Eu ficava chorando
porque eu queria voltar pra casa, e alguns adultos tentavam cuidar de mim, só
que eu queria meus pais, não eles.
Algumas pessoas que ficavam lá perto de mim às vezes sumiam
do nada, e eu pensei que talvez elas tivessem ido embora e que aí eu poderia ir
pra casa também, então um dia quando a moça tava sussurrando perto de alguém
dormindo eu tentei sair escondidinha com um dos moços que ficavam comigo lá. Eu
tava com medo de ficar sozinha e me perder no escuro da floresta pra sempre, e
o moço me ajudou. Depois umas pessoas acharam a gente e me levaram de volta
pros meus pais. Eu fico com medo de dormir e a moça aparecer de novo, mas a
mamãe disse que não vai mais acontecer.”
23ª Delegacia de
Polícia Civil – Transcrição de relatos na íntegra
Identificação da
vítima: F44KJ0
Nome: Vinícius
Augusto Assunção
Sexo: masculino
Data de nascimento:
28/05/1984 (28 anos)
Data da entrevista: 17/03/2013
O entrevistado foi
resgatado nas proximidades do Juncal, em Extrema, no dia 29/01/2013, junto com
mais uma vítima, sendo estes os únicos resgatados até o momento. Vinícius
Augusto Assunção tinha apenas leves ferimentos no corpo e leves sinais de
asfixia. Seu desaparecimento foi registrado na Delegacia de Polícia Civil no
dia 03/01/2013. O entrevistado, desde que foi resgatado, mostra fortes sinais
de insônia e crises do pânico.
“Eu já vinha tendo pesadelos há algumas noites, todos os
dias era a mesma coisa, eu tinha paralisia do sono e ficava deitado como se
tivesse colado na cama, sem conseguir respirar direito, porque uma mulher
parecia estar em cima de mim durante o sono, me sufocando como se me sugasse.
Era muito exaustivo, acaba com sua força, você fica apavorado.
Até pensei em procurar um psiquiatra ou qualquer coisa
assim, achei que eu tava enlouquecendo de verdade, eram muitas noites tendo
essa paralisia, e então um dia eu estava indo dormir e comecei a ouvir uns
barulhos no andar de baixo da minha casa. Quer dizer, eu moro sozinho, e depois
de tantas noites horríveis eu fiquei realmente apavorado. Parecia tipo téc-téc,
sei lá, só sei que era apavorante.
O barulho não parou, embora tivesse umas pausas entre um
téc-téc e outro, e eu tentei dormir mesmo assim, só que naquela noite a
paralisia foi surreal, eu podia jurar que aquela mulher parecia fisicamente em
cima de mim, eu queria muito acordar, e quando acordei eu tava em outro lugar,
uma espécie de toca enfurnada na floreta, manja? Fedia a carne podre, hortelã e
planta queimada, era uma bosta, muita gente morria ali. Eu vi aquela mulher
louca paralisando as pessoas em sonho, parecia um demônio sussurrando maldições
pra atormentar quem dormia, as pessoas morriam de desespero, algumas de parada
cardíaca, eu acho.
(...)
Eu não sei mesmo explicar aquela porra de lugar, não fazia
sentido, a mulher era louca mesmo, sabe? A gente não via saída daquela toca,
era difícil ficar ali.
Tinha uma menininha lá, que fugiu comigo. Eu percebi que a
mulher louca mantinha vivo quem ficava com mais medo, como se ainda tivesse o
que sugar, então a menininha viveu uns dias por lá porque sabe como é, criança
é fácil pra ter medo, e eu me deixei apavorar pra tentar viver ali.
(...)
Era difícil se localizar dentro daquela toca, mas depois de
umas semanas eu consegui notar formas de sair e planejar uma fuga minimamente
segura com o pouco de acesso que eu tinha com o mundo externo. Não podia levar
toda a galera comigo, porque provavelmente a doida ia perceber que todo mundo
fugiu e iria atrás, e é difícil fugir com grupos grandes, então só levei a
garota comigo. Se desse pra gente fugir eu podia chamar a polícia, e foi o que
eu fiz, mas chegando lá não encontraram mais nada.”
[PARTE 3/5]
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Arte: SpecMisam |
Este diário foi encontrado no dia 27/02/2013, no meio de
alguns escombros nas proximidades de Juncal, quando a polícia, guiada pelos
relatos de alguns resgatados, foi patrulhar a região em busca de mais pistas. Pouca
coisa foi encontrada, salvo por este diário. O corpo do suposto dono foi
encontrado no dia 23/02/2013, bastante mutilado e com sérios sinais de asfixia.
06/07/2012 - sexta-feira
Já é a quarta noite essa semana que eu tenho pesadelos, são
muito reais. Tenho medo de contar para as pessoas e parecer um louco, ou talvez
só muito dramático. Não sei o que é pior. Estou com medo de dormir e ver aquela
mulher de novo, mas sei que não posso adiar para sempre, em algum momento vou
dormir de novo.
09/07/2012 - segunda-feira
Eu tô começando a ficar apavorado de verdade, eu não durmo
há três noites, eu não consigo mais comer porque meu estômago parece
eternamente paralisado e gelado, essa paralisia vem sempre que eu durmo, eu não
aguento mais. Não sei o que fazer, eu sinto que estou realmente enlouquecendo.
Eu só queria me livrar disso pra sempre.
11/07/2012 - quarta-feira
Eu acordei no meio do mato. Fico feliz de pelo menos esse
diário com sua caneta estar no meu bolso.
Ainda não consegui assimilar direito o que estou vendo, para
ser sincero. Parece uma cabana, eu acho, mas não tenho certeza. Muito estranho
para ser uma cabana.
Tem pessoas aqui perto, eu ouço pessoas. Cochichando,
chorando, ouço gente tremendo. Esse lugar fede, sério. As pessoas devem dormir
no meio da própria bosta, e me apavora pensar que eu provavelmente serei uma
dessas pessoas, um novo integrante desse grupo apavorado.
É tudo escuro, e parece ser escuro por boa parte do tempo,
talvez até durante o dia. Eu estou usando a luz do meu isqueiro zipo para
escrever agora, o combustível não vai durar para sempre. Pensei em colocar fogo
nessa cabana (ou sei lá o que seja), mas nem sei se conseguiria sair antes de
morrer sufocado, então não quero arriscar.
17/07/2012 – terça-feira
Tem sido difícil escrever, ela tem me vigiado. Talvez ela só
seja louca demais e nem saiba o que está acontecendo, me vigia apenas por não
entender, mas acho isso improvável, já que ela parecia pegar mais pesado com
meus medos sempre que me pegava escrevendo. Ou talvez isso seja só mais uma
paranoia minha.
Eu realmente me sinto mais paranoico, de verdade. Eu não
lembro mais de muitas coisas que eu costumava me lembrar, eu sinto como se
minha mente estivesse tão invadida, quase estuprada, que eu já não consigo mais
querer ser dono dela. Eu quero que a mulher a leve embora quando vem, e acho
que a mulher percebe isso.
As árvores parecem falar, tudo parecer gemer ao meu redor, e
às vezes eu penso que o silêncio está me respondendo de volta. As luzes
fraquíssimas têm um cheiro claustrofóbico nos raros momentos em que aparecem, e
eu só não aguento mais nada relacionado a esse lugar.
Eu ouvi a mulher sussurrando sozinha. Acho que o nome dela é
Valery.
22/07/2012 – domingo
O nome dela é Natasha e Valery. Não faz sentido, eu sei que
não, mas eu juro que é verdade.
Todas as noites ela chega em cima dos meus pesadelos,
pesada. Baba em cima do meu sono, a língua se pendura fora da boca às vezes,
como se fosse lamber meu rosto antes de me devorar. Parece se alimentar do
medo, não me deixa gritar, não me deixa dormir, ela nunca me deixa.
Ela começou a me perguntar nos sonhos se eu também queria
ser rachado. Eu não posso responder nada, mas me pergunto se isso não tem a ver
com a Natasha ser Valery. Às vezes eu também acho que já rachei há muito tempo.
26/07/2012 – quinta-feira
Eu acho que entendi o que Valery quis dizer. Eu comecei a
falar comigo mesmo, mas meus sussurros sem sentido começaram a me responder de
volta. As vozes disseram que se chamam Altraz. Acho que tenho uma companhia
indesejada.
Eu não quero ser como Natasha e Valery, isso me assusta, e
Valery gostou do meu novo medo.
Os cheiros aqui continuam fortes e horríveis, mas eu acho
que consegui encontrar uma saída desse lugar.
Eu não consigo mais comer muito bem, não mais consigo
diferenciar dias e formas comuns.
Eu acho que Altraz não gosta de mim.
Valery disse para Altraz que esse é um bom jeito de
sobreviver, eu não entendi o que significa.
Minha cabeça dói, meu corpo todo dói. Eu não respiro muito
bem.
30/07/2012 – segunda-feira
Altraz fala comigo e grita comigo como Valery faz com
Natasha. Eu me sinto gritando, morrendo e fervendo ao mesmo tempo.
Valery continua sugando meus pesadelos, pesando meu sono com
suas unhas podres e seu bafo nojento.
Eu vi uma saída, acho que consigo sair ainda hoje, por isso
estou escrevendo agora. Quero lembrar que eu consegui sair quando acordar disso
tudo.
Altraz contou para Valery que eu sei como fugir. Eu estou
com medo. “Me deixe em paz, Márcio”, Altraz diz. Eu não lembrava que Márcio era
meu nome. Deve ser isso mesmo, eu lembro alguma coisa sobre isso.
A Valery tá sorrindo enquanto baba muito. Eu acho que ela tá
vindo pra cá, espero estar escondido o suficiente. Talvez ela acabe me matando,
eu tô tremendo. O que aconteceu comigo? Ela tá vindo mesmo. As coisas fedem
demais aqui, não tem luz suficiente pra eu saber o que tem ao redor, não muito
bem. Ela vai acabar me mat
Cala a boca, Marcos, seu chorão. É por isso que eu não gosto
de você.
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Arte: SpecMisam |
Dona Catarina não entendeu o que acontecera, apavorou-se sem
entender e morreu sem entender também. Assassinato? Pergunte à Valery.
Ela era apenas uma senhora muito maltratada pela vida.
Assustava-se fácil, tinha medos bobos que faziam seus filhos, já adultos, se
divertirem. “Oh, mãe, a senhora não precisa bater na madeira pra afastar mal
olhado”, “não tem necessidade de passar sal grosso na porta, mãe, deixa disso”.
Apesar da despreocupação dos filhos, Dona Catarina não largava as manias e os
medos.
Viúva, morava sozinha, apenas na companhia de seu pequeno
cachorro, Pudim. Em uma noite quente e abafada de verão, Dona Catarina se viu
sem opções além de deixar a janela aberta antes de ir dormir, mas isso a fez
muito desconfortável: não gostava de deixar esse espaço aberto, era
supersticiosa e não confiava no mundo. Janelas abertas eram convites que ela
não queria dar, mas não tinha como fazer diferente naquela noite.
Aceitou a condição que a noite impunha e foi se deitar.
Repetiu para si mesma que seus filhos tinham razão, ela era apenas muito
dramática e medrosa, que não precisava agir daquela forma, que não havia razão
para ter tanto receio do mundo. Sim, eles estavam certos, ela provavelmente
estava fazendo drama. A vida fora rude com ela, mas que culpa o mundo tinha?
Suas belezas continuavam existindo apesar disso, ele continuaria seguindo
apesar dela.
Apagou as luzes, colocou o Pudim em cima da cama para dormir
a seu lado e se deitou devagar. Respirou fundo algumas vezes, tentando fazer os
receios de dissiparem, os músculos relaxarem, para a cabeça finalmente
desligar.
Estava quase adormecendo quando ouviu um barulho, um
barulhinho quase imperceptível. Téc-téc.
Tentou ignorar no começo. Fingiu que não ouvia nada,
virou-se para o lado, abraçou Pudim. Observou por alguns segundos a janela
aberta, ouviu o assovio abaixo da brisa fresca empurrando as cortinas, o
barulho de Pudim se mexendo na cama, o arfar de sua própria respiração, o som
de algum cachorro de rua arrebentando um saco de lixo do lado de fora, o cheiro
das flores que mantinha ao lado da cama. Tentou ignorar no começo, mas foi
ficando insuportável.
Então, tão repentinamente quanto começou, o barulho
desapareceu. Dona Catarina não saberia dizer se durara dois minutos ou duas
horas, mas ficou agradecida pelo silêncio que voltou e, depois de um tempo
tentando esquecer o medo, adormeceu.
A princípio, não teve sonhos. Ficou absorta na escuridão da
inconsciência por algum tempo, até que sentiu um súbito peso em seus sonhos
ausentes. O peso ganhou a forma de uma mulher acabada, nojenta e assustadora,
que agachou sobre a Dona Catarina. A língua fedida pendia para fora da boca, a
baba caia sobre a Dona Catarina, que tentava aterrorizada se libertar disso,
mas não tinha forças, nem coragem suficiente.
Valery sugou Dona Catarina até a última gota, sorvendo
medos, receios, fantasmas e silêncios. O desespero que sua presença causava
servia para intensificar a potência de tudo o que absorvia. Dona Catarina foi
perdendo a força, sua semiconsciência foi sumindo, mas não antes de sentir o
pavor engolir tudo o que existia.
Seu coração começou a acelerar, de repente parecia que ia
quebrar as costelas. Batia freneticamente, como se gritasse por ajuda, até que,
em um breve descuidado, um simples descompasso, tropeçou e interrompeu suas
atividades. Tentou retomar o ritmo uma, duas, três vezes. Não funcionou, Dona
Catarina já era fraca.
O desespero, que antes que crescente, deu lugar à falta de
ar. A consciência foi embora com a mesma leveza com que a noite corria. Valery,
depois de acabar seu jantar, abandonou o corpo flácido e foi procurar alguma
sobremesa. Ainda tinha fome.
[PARTE 5/5]
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Quem é Natasha?
Natasha era uma mulher comum, com uma vida comum e
experiências comuns.
Formou-se em direito ainda jovem, veio de uma família de
advogados e nunca pensou em fazer outra coisa além de seguir os mesmos passos.
Casou-se com Gustavo Nogueira, um contador sério e de poucos amigos que
conhecera na faculdade, pouco tempo depois de se formar. Não tinha grandes
ambições sobre o casamento, a carreira, nem sobre a vida de modo geral, estava
apenas vivendo do seu jeito desinteressado.
Não demorou muito para que engravidasse do primeiro filho,
logo depois que se casou. O garoto se chamava Daniel, e alguns anos mais tarde
também nasceu a caçula, Catarina.
A vida passava. Natasha não tinha grandes ambições, era uma
mulher comum. Trabalhava, cuidava das crianças de noite, tomava café quando
acordava e chá antes de dormir, ia para a academia de manhã, gostava de ir ao
cinema às vezes e ia ao cabeleireiro pelo menos uma vez por mês. Era atenciosa
com quem era próximo a ela, cumprimentava os conhecidos, ria com educação mesmo
quando não tinha vontade e era acostumada a usar salto alto e roupas
desconfortáveis o dia todo.
Ela era comum, e é por isso que ninguém podia acreditar que,
no fundo, – realmente lá no fundo – havia algo errado com Natasha. Uma
inquietude estranha surgia dentro dela às vezes, mas nunca comentava isso com
ninguém, embora soubesse que as sensações a acompanhavam há tanto tempo que
podia imaginar que não era algo passageiro. Gostava de trabalhar com direito
penal justamente porque alimentava essa inquietude, essa movimentação interior
que não devia estar ali. Não sentia repulsa ou angústia pelos casos, e nunca
tinha problema em pegar os mais pesados. Agia com profissionalismo, mas, no
fundo, sabia que algo estava errado.
A vida começou a mexer com sua cabeça. Pesadelos, suor frio.
Ela ainda sorria para as pessoas e ria mesmo sem vontade, tomava café quando
acordava e um chá antes de dormir, e mesmo assim sentia tudo saindo do lugar.
Começou a sussurrar sozinha, quando ninguém estava olhando.
“Valery”.
Sussurrar sozinha de repente não era mais o suficiente.
Precisava sair, ficar mais tempo longe de casa e das pessoas. “Valery, Valery”.
Agia normalmente, mas sentia aquele nome rasgando alguma coisa dentro dela.
“Valery”.
Uma noite, enquanto tomava o chá, Valery veio visitar. Era
uma noite de outono, as crianças tinham ido dormir, seu marido estava esperando
na cama. Sentada à mesa da cozinha, passando os dedos pela asa da xícara,
tentou se concentrar nos barulhos ao redor. O relógio na parede indicando a
vida passar, o motor da geladeira, o cachorro do vizinho latindo. E então,
subitamente, sentiu como se tivessem trocado um disco na sua cabeça. Ainda percebia,
de forma bem sutil, sua presença em seu próprio corpo, mas era secundária.
Em seu lugar, sentiu assumir a cabeça de alguém que não era
ela. Alguém usando seu corpo, sem pedido e sem aviso. Natasha simplesmente foi
jogada para baixo, trocada por outra pessoa que nem conhecia, por aquela
inquietação estranha. Sentia leves deslizes entre ela e aquilo, mas nunca tinha
se estabelecido assim.
- Valery. – a outra pessoa anunciou em voz alta, usando a
boca de Natasha.
A advogada ficou surpresa, quase apavorada. Tudo de repente
fazia sentido, e ao mesmo tempo tinha se tornado muito mais assustador. Tentou
voltar ao normal outra vez, e funcionou por alguns minutos. Entretanto, Valery subiu
de novo, olhou as mãos que agora controlava, se analisando.
Levantou-se da mesa, abriu a porta e foi embora, deixando
tudo escancarado atrás de si. Não levou nada, nem sapatos, apenas correu pela
cidade com o pijama. A inquietação tinha fome.
Dias se passaram, Natasha ainda estava desaparecida. Gustavo
dava queixa de seu sumiço, as crianças choravam sem parar, a história não fazia
sentido.
Valery demorou para conseguir controlar sozinha o corpo,
dominando Natasha até que ela nunca mais conseguisse voltar. Encontrou áreas
rurais, mato, o que era bom para se esconder. Valery lembrava que as pessoas
costumavam gostar de gente assim, como ela, e com o tempo pararam. Ela não
recebia mais atenção, nem nada. Morria de fome.
Semanas se passaram. Valery arrancava alguns tufos do
cabelo, ansiosa, inquieta. Os olhos injetados de raiva e sede iam e voltavam
pelo cenário, sem se prender em nada em especial. As unhas das mãos cresciam
rápido, mas Valery as deixava perto da carne, roendo com as unhas o dia todo.
Mascava folhas de eucalipto, mas isso não impedira seus dentes de apodrecer. As
unhas dos pés também cresciam, ficaram compridas o bastante para que fizessem
barulho enquanto ela andava. Téc, téc, téc.
As roupas já estavam em frangalhos, e seus olhos não
gostavam de luz, o que levou Valery a trocar o dia pela noite, evitando o sol e
a maior parte dos seres vivos que a irritavam. Um dia, porém, encontrou algo.
Uma pessoa.
Era quase de manhã, o sol nasceria em breve. Valery, andando
às cegas, chegou à margem de um rio. Agachou-se ali perto, e não demorou para
ver, alguns metros adiante, um homem de meia idade preparando-se para começar
mais um dia. Um simples pescador.
O homem olhou para o lado e encontrou a figura encurvada,
horrível e estranha que o encarava fixamente. Os dentes podres apareciam pela
boca entreaberta, um pouco de baba escorria pela pele suja e fedida. Ele gritou
de susto, e isso animou o dia de Valery.
Téc, téc, téc. Ela se aproximou do pescador que, numa
estúpida tentativa de fuga, tropeçou nas redes de pesca. Sem perder tempo,
Valery se jogou em cima dele. A baba pingou um pouco no rosto do homem,
fazendo-o prender a respiração para evitar a ânsia de vômito.
Valery não queria carne. Bateu uma pedra na cabeça do
pescador, fazendo-o desmaiar. Então, ela foi até o outro lado, onde a alma fica
enquanto o corpo dorme, e ali começou a sugar o homem. A alma se contorcia,
indefesa. O desespero era saboroso para Valery, então ela continuou. Sugou tudo
rápido, e em poucos minutos o pescador estava morto. Ela voltou ao mundo
material e saiu de cima do homem, distanciando-se.
Téc, téc, téc. Ainda tinha fome.
Esperamos que tenham gostado! É claro que adicionamos e
mudamos milhões de coisas, mas Valery é inspirada na Pisadeira, uma personagem
pouco conhecida do nosso folclore.
Quer ler pelo Facebook? Sem problemas, os links estão logo abaixo:
Leia a parte 1 aqui: https://www.facebook.com/meistergabby/posts/2833135316712215?__tn__=K-R
Leia a parte 2 aqui: https://www.facebook.com/meistergabby/posts/2840105549348525?__tn__=K-R
Leia a parte 3 aqui: https://www.facebook.com/meistergabby/posts/2870693562956390?__tn__=K-R
Leia a parte 4 aqui: https://facebook.com/meistergabby/posts/2914955731863506?__tn__=K-R
Leia a parte 5 aqui: https://www.facebook.com/meistergabby/posts/3070969476262130?__tn__=K-R
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