O SUSTO E A BALA, de Hermes Homem Cristo (Resenha e Entrevista com o autor)
[Quem é vivo sempre aparece, e estou viva então trago mais uma resenha]
Hoje, falaremos de um livro simples, curto (menos de 70 páginas), brasileiro e que pode não ser a primeira alternativa para quem está começando a jornada na literatura: e digo isso como elogio, porque "O susto e a bala" é um material bem feito e muito sutil que talvez peça um pouco de experiência para ser lido como se deve.
O livro inteiro é um compilado de cartas escritas por um espião prestes a se aposentar, Rivero, para seu comandante, Coronel González, durante uma revolta armada contra um governo autoritário no Caribe. Rivero conta sua experiência desde o momento em que chega na ilha onde deverá se infiltrar por algum tempo até o momento em que é afastado e, principalmente, expõe seus sentimentos, um pouco de seu passado e suas visões sobre a revolta, o Coronel e o contexto em geral. Esse é, para mim, o primeiro ponto passível de elogio do livro: a construção de personagem que vemos em Rivero é muito bem construída com um simples compilado de cartas. Sendo um registro de um relato pessoal, é natural que o livro expresse com clareza as emoções da personagem, mas suas oscilações, desconfianças e seu amadurecimento (surpreendentemente bem explorado e mostrado em menos de 70 páginas) mostram um personagem vivo por trás das cartas, e aproxima o leitor justamente pelo fator humano colocado no livro.
Todo o cenário de "O susto e a bala" se passe dentro de um contexto de revolta armada (passando inclusive pelos momentos pré, durante e pós revolta), e o autor mostra entender e dimensionar perfeitamente o que se passava do lado armado da revolta, uma percepção real de todo cenário político e social em cada etapa da revolta, e o mais interessante é que isso fica visível sem que, nas cartas, a personagem faça grandes divagações sobre o que acontece durante a revolta - até porque as cartas são endereçadas ao Coronel, então não havia motivos para que Rivero se desse ao trabalho de informá-lo sobre o que ele estava fazendo. É precisamente a sutileza com que o autor coloca as informações no livro que dá a tudo um sabor especial. Foi possível mostrar a tensão da revolta e o termômetro social do momento sem que fosse gasto muito tempo falando diretamente sobre o assunto.
Além disso, enquanto estudante de história, me sinto na obrigação de observar que, embora a revolta não tenha existido de verdade, o autor consegue fazer o material ser extremamente crível e convincente não apenas pela linguagem e pela mentalidade, mas pelo próprio contexto, histórico-social da América (especialmente na América Latina) naquele momento. Ou seja, é uma boa forma de perceber como aplicar mentalidades de certos contextos dentro de sua história e fazê-la pertinente mesmo assim.
No geral, o livro me conquistou pelo trabalho de desenvolvimento surpreende de Rivero, pela precisão histórica, pela qualidade da escrita e por toda a sutileza e simplicidade que o autor coloca em seu livro, mesmo se pautando em assuntos tão complicados como guerras e conflitos internos.
Como se o livro por si só já não fosse uma experiência completa, eu ainda tive o privilégio de entrevistar o autor, e trago aqui para vocês o que nós conversamos:
Gabby Meister: Quando começou a escrever e por quê?
Hermes Homem Cristo: A ideia surgiu em 2018, porém ainda muito vaga e muito repentina, então a princípio não encontrei um propósito para ela. Tinha um delineamento muito vago do estilo de narrativas (através de cartas), de onde ela se passaria (uma ilha a sofrer um golpe de Estado no Caribe), mas eu não tinha uma conclusão, um conflito claramente definido, então eu ainda não tinha clareza do por quê escrever quando pensei nisso, foi algo que fui tornando mais claro conforme eu escrevia. Eu diria que só fui entender o motivo de ter escrito quando o livro já estava concluído.
GM: O que te inspirou?
HHC: Quando a narrativa estava concluída e eu comecei a pensar sobre o que movimentaria esse processo, eu percebi que dois problemas me nortearam: entender que eu sou enquanto homem abstrato, sujeito à dor como todos os outros, como a iminência de morte, envelhecimento, egoísmo, a necessidade da dor, e também entender quem eu sou enquanto latino-americano, fruto de processos históricos específicos. Ambos os problemas vieram a calhar em uma personagem arquetípica, o Riveiro, e através dele eu me pus a pensar problemas e dilemas que me permeiam de algum modo, seja enquanto ser humano, seja enquanto latino. Eu diria que esse livro foi quase um confinamento aos problemas que eu e qualquer latino-americano moderno deveria confrontar durante a vida, em um cenário fictício porém igualmente verdadeiro.
GM: Como você estudou/se preparou para este livro?
HHC: Minha principal referências foram os documentos publicados atualmente pela Cia do Desenvolvimento de diferentes Golpes de Estado na América Latina, especialmente os relacionados à Guatemala, devido ao formato epistolar da narrativa e pelo viés do próprio protagonista, que é um agente sujeito à burocracia da organização.
GM: Fica claro que você tem mais interesse em focar em Rivero do que no golpe. O que te leva a isso?
HHC: Não foi uma escolha deliberada, o enfoque no protagonista surgiu espontaneamente, e nas minhas releituras eu percebi que não se pode dissociar os dilemas vividos pela protagonista dos dilemas vividos na Terra e no Continente Latino-americano, por isso falar de Rivero é falar da guerra e vice-versa. O enfoque é em grande medida relacionado ao enfoque epistolar da obra, se assemelhando a um diário, em sua fala sempre transparece algo individual, que entretanto não deve ser visto como algo isolado da guerra e da crise sócio-política, porque reflete diretamente sobre a personagem e muitos de seus conflitos provém disso.
GM: Onde você se enxerga em Rivero?
HHC: Eu me enxergo em Rivero enquanto ser humano sujeito às mesmas dores que ele, e também me vejo em Rivero enquanto latino sujeito a uma mesma história de instabilidade, fragilidade identitária, crises democráticas e também pobreza. Eu me enxergo nele na mesma medida que qualquer latino se enxergaria, e também como qualquer ser humano enquanto sujeito numa mesma gama de dilemas inerentes a qualquer sofredor.
GM: Anda trabalhando com outros projetos? Tem planos de publicar outros livros?
HHC: Estou na iminência de terminar meu próximo romance, que se chamará "Morte por mil cortes", a história de um ex-presidiário que após 8 anos preso por um crime que supostamente não cometeu é inocentado e retorna para sua cidade natal. Nesses 8 anos, muita coisa mudou e ele precisa lidar com tudo o que mudou na cidade e naqueles que o cercavam e com o que mudou nele mesmo, e então algumas perguntas são levantadas: ele é ou não culpado pelo crime pelo qual foi preso? Qual crime ele cometeu? O que se manteve dele em meio a tantas mudanças bruscas, como o cárcere?
Bom, por enquanto é isso! Espero que tenham gostado da resenha, do que viram do livro e do autor!
Gabby Meister
Hoje, falaremos de um livro simples, curto (menos de 70 páginas), brasileiro e que pode não ser a primeira alternativa para quem está começando a jornada na literatura: e digo isso como elogio, porque "O susto e a bala" é um material bem feito e muito sutil que talvez peça um pouco de experiência para ser lido como se deve.
O livro inteiro é um compilado de cartas escritas por um espião prestes a se aposentar, Rivero, para seu comandante, Coronel González, durante uma revolta armada contra um governo autoritário no Caribe. Rivero conta sua experiência desde o momento em que chega na ilha onde deverá se infiltrar por algum tempo até o momento em que é afastado e, principalmente, expõe seus sentimentos, um pouco de seu passado e suas visões sobre a revolta, o Coronel e o contexto em geral. Esse é, para mim, o primeiro ponto passível de elogio do livro: a construção de personagem que vemos em Rivero é muito bem construída com um simples compilado de cartas. Sendo um registro de um relato pessoal, é natural que o livro expresse com clareza as emoções da personagem, mas suas oscilações, desconfianças e seu amadurecimento (surpreendentemente bem explorado e mostrado em menos de 70 páginas) mostram um personagem vivo por trás das cartas, e aproxima o leitor justamente pelo fator humano colocado no livro.
Todo o cenário de "O susto e a bala" se passe dentro de um contexto de revolta armada (passando inclusive pelos momentos pré, durante e pós revolta), e o autor mostra entender e dimensionar perfeitamente o que se passava do lado armado da revolta, uma percepção real de todo cenário político e social em cada etapa da revolta, e o mais interessante é que isso fica visível sem que, nas cartas, a personagem faça grandes divagações sobre o que acontece durante a revolta - até porque as cartas são endereçadas ao Coronel, então não havia motivos para que Rivero se desse ao trabalho de informá-lo sobre o que ele estava fazendo. É precisamente a sutileza com que o autor coloca as informações no livro que dá a tudo um sabor especial. Foi possível mostrar a tensão da revolta e o termômetro social do momento sem que fosse gasto muito tempo falando diretamente sobre o assunto.
Além disso, enquanto estudante de história, me sinto na obrigação de observar que, embora a revolta não tenha existido de verdade, o autor consegue fazer o material ser extremamente crível e convincente não apenas pela linguagem e pela mentalidade, mas pelo próprio contexto, histórico-social da América (especialmente na América Latina) naquele momento. Ou seja, é uma boa forma de perceber como aplicar mentalidades de certos contextos dentro de sua história e fazê-la pertinente mesmo assim.
No geral, o livro me conquistou pelo trabalho de desenvolvimento surpreende de Rivero, pela precisão histórica, pela qualidade da escrita e por toda a sutileza e simplicidade que o autor coloca em seu livro, mesmo se pautando em assuntos tão complicados como guerras e conflitos internos.
Como se o livro por si só já não fosse uma experiência completa, eu ainda tive o privilégio de entrevistar o autor, e trago aqui para vocês o que nós conversamos:
Gabby Meister: Quando começou a escrever e por quê?
Hermes Homem Cristo: A ideia surgiu em 2018, porém ainda muito vaga e muito repentina, então a princípio não encontrei um propósito para ela. Tinha um delineamento muito vago do estilo de narrativas (através de cartas), de onde ela se passaria (uma ilha a sofrer um golpe de Estado no Caribe), mas eu não tinha uma conclusão, um conflito claramente definido, então eu ainda não tinha clareza do por quê escrever quando pensei nisso, foi algo que fui tornando mais claro conforme eu escrevia. Eu diria que só fui entender o motivo de ter escrito quando o livro já estava concluído.
GM: O que te inspirou?
HHC: Quando a narrativa estava concluída e eu comecei a pensar sobre o que movimentaria esse processo, eu percebi que dois problemas me nortearam: entender que eu sou enquanto homem abstrato, sujeito à dor como todos os outros, como a iminência de morte, envelhecimento, egoísmo, a necessidade da dor, e também entender quem eu sou enquanto latino-americano, fruto de processos históricos específicos. Ambos os problemas vieram a calhar em uma personagem arquetípica, o Riveiro, e através dele eu me pus a pensar problemas e dilemas que me permeiam de algum modo, seja enquanto ser humano, seja enquanto latino. Eu diria que esse livro foi quase um confinamento aos problemas que eu e qualquer latino-americano moderno deveria confrontar durante a vida, em um cenário fictício porém igualmente verdadeiro.
GM: Como você estudou/se preparou para este livro?
HHC: Minha principal referências foram os documentos publicados atualmente pela Cia do Desenvolvimento de diferentes Golpes de Estado na América Latina, especialmente os relacionados à Guatemala, devido ao formato epistolar da narrativa e pelo viés do próprio protagonista, que é um agente sujeito à burocracia da organização.
GM: Fica claro que você tem mais interesse em focar em Rivero do que no golpe. O que te leva a isso?
HHC: Não foi uma escolha deliberada, o enfoque no protagonista surgiu espontaneamente, e nas minhas releituras eu percebi que não se pode dissociar os dilemas vividos pela protagonista dos dilemas vividos na Terra e no Continente Latino-americano, por isso falar de Rivero é falar da guerra e vice-versa. O enfoque é em grande medida relacionado ao enfoque epistolar da obra, se assemelhando a um diário, em sua fala sempre transparece algo individual, que entretanto não deve ser visto como algo isolado da guerra e da crise sócio-política, porque reflete diretamente sobre a personagem e muitos de seus conflitos provém disso.
GM: Onde você se enxerga em Rivero?
HHC: Eu me enxergo em Rivero enquanto ser humano sujeito às mesmas dores que ele, e também me vejo em Rivero enquanto latino sujeito a uma mesma história de instabilidade, fragilidade identitária, crises democráticas e também pobreza. Eu me enxergo nele na mesma medida que qualquer latino se enxergaria, e também como qualquer ser humano enquanto sujeito numa mesma gama de dilemas inerentes a qualquer sofredor.
GM: Anda trabalhando com outros projetos? Tem planos de publicar outros livros?
HHC: Estou na iminência de terminar meu próximo romance, que se chamará "Morte por mil cortes", a história de um ex-presidiário que após 8 anos preso por um crime que supostamente não cometeu é inocentado e retorna para sua cidade natal. Nesses 8 anos, muita coisa mudou e ele precisa lidar com tudo o que mudou na cidade e naqueles que o cercavam e com o que mudou nele mesmo, e então algumas perguntas são levantadas: ele é ou não culpado pelo crime pelo qual foi preso? Qual crime ele cometeu? O que se manteve dele em meio a tantas mudanças bruscas, como o cárcere?
Bom, por enquanto é isso! Espero que tenham gostado da resenha, do que viram do livro e do autor!
Gabby Meister
[A resenha acima tem por único objetivo divulgar minha visão e opinião pessoal sobre o livro citado, e não visa ofender ou difamar ninguém, nem mesmo difamar a obra ou o autor dela. É apenas meu ponto de vista, questionável e discutível]
Super interessante!
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